sábado, 16 de outubro de 2010

Autor-personagem


Filme: Tudo pode dar certo (Whatever works, 2009)
Nota: 7,5
Para ler escutando: Common People - Pulp

Nada mais difícil para um escritor, seja ele autor de post-its ou de romances de 900 páginas (ou de críticas em um blog), do que conseguir se distanciar do que escreve e não tornar tudo uma grande autobiografia disfarçada. Vários escritores e roteiristas, inclusive, não fazem muita questão de criar uma barreira entre o inventado e o vivenciado, e se diluem em diversos personagens, mantendo sempre um tipo de alterego fictício nas suas obras. Fellini, por exemplo, era adepto disso, colocando sempre aspectos diferentes de sua personalidade nos seus filmes. Mas preso em algum lugar no meio das frases “Escreve sobre o que conheces” e “Conhece-te a ti mesmo”, temos Woody Allen. Woody Allen sabe sim fazer filmes nos quais sua personalidade não transparece. Seus dramas, por exemplo. E até mesmo a comédia recente “Vicky Cristina Barcelona”, que muita gente ainda jura que é do Pedro Almodóvar. Mas na maior parte de suas comédias, Woody nem se dá ao trabalho de atenuar os traços autobiográficos.
Quem é Woody Allen? Woody Allen é um proto-indie (que frase pretensiosa da minha parte). O diretor-roteirista é um dos primeiros a adotar esse estilinho camisa xadrez, óculos de avô e sarcasmo na ponta da língua que tanto é copiado atualmente. Neurótico, de fala rápida, descrente, entediado e impressionado com o mundo a sua volta, Woody se coloca em cada personagem seu da maneira mais límpida possível. E em “Tudo pode dar certo” o proto-indie faz um estudo sobre todos os cults e alternativos de New York, e coloca no centro da história o seu tradicional alterego, dessa vez escolhendo não interpretá-lo, passando a responsabilidade para Larry David, famoso por dividir com Jerry Seinfeld os créditos de criador da série de comédia Seinfeld.
“Tudo Pode Dar Certo” firma suas estruturas em um ótimo roteiro que Allen escreveu ainda nos anos 70, e faz rir sem dificuldades e com freqüência. Mas o filme, apesar de estar acima da média geral de comédias lançadas nos últimos tempos, não sobressai numa filmografia como a de Allen. Não é um “Scoop”, mas não chega a ser um “Noivo neurótico, noiva nervosa”. Larry David não faz um bom trabalho como Boris, e atua como se todo o filme fosse uma gigante apresentação de stand-up comedy. Mas isso só acontece pois Allen cometeu o infeliz pecado de criar um personagem que “quebra a quarta parede”. Quebrar a quarta parede é olhar diretamente para a câmera e dialogar com o espectador. Na maior parte dos casos nos quais esse recurso é utilizado, o resultado é incômodo e desconcertante. Nem todos são Ferris Bueller.
Mas se o filme falha no tratamento de seu protagonista, compensa na construção de seus coadjuvantes. Melody é o contraponto preciso para o intelectualismo exagerado de Boris, e Evan Rachel Wood a interpreta perfeitamente. Além disso, Patricia Clarkson rouba a cena como a mãe de Melody.
A grande diferença entre Boris e os outros personagens autobiográficos de Woody é que o solitário físico de “Tudo pode dar certo” não conquista a simpatia do público e nem quer. Boris é mais amargo, rude e anti-social e o pior, pretensioso. Talvez isso reflita o momento pelo qual o diretor está passando. Boris treina sua aprendiz Melody para evitar clichês, mas o fim do filme não consegue fugir do grande clichê da festa de fim de novela. Sinceramente? Nada disso atrapalha o brilho da escrita de Woody Allen, que não perde o timing cômico com os anos. E as qualidades e os defeitos do filme se misturam no seu final, no qual o diretor nova-iorquino basicamente confessa que, no meio de todas suas peculiaridades, é só um cara normal, e no meio de toda ironia, esconde-se um sentimental de carteirinha. Mas, pro bem do cinema, Sr. Allen, não fique normal demais.

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