quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O labirinto



Filme: "A Origem" (Inception, 2010)
Nota: 10
Para ler escutando: My Body is a Cage - Arcade Fire

Interpretação de sonhos. Desde Carl Jung até os livrinhos de banca de revista, todos nós buscamos em algum lugar uma lógica para essa curiosa manifestação do nosso subconsciente. De números de loteria aos nossos desejos mais escondidos, queremos encontrar o que está no fundo de cada cofre que vislumbramos durante nosso sono. O maior obstáculo nessa nossa busca ávida por respostas é que nem sempre o sonho quer revelar seus segredos e propósitos. Muitas vezes acordamos exatamente na hora que ia acontecer “aquilo” que ia explicar tudo. Acordamos no momento de maior suspense e ficamos órfãos de uma resposta. Acordamos no momento mais feliz e repleto de realizações e num piscar de olhos, ou melhor, num abrir de olhos, nada era real. E se o objetivo desse jogo do seu subconsciente não fosse a resposta, e sim o questionamento? O subjetivo? Não estou aqui pra discutir a subjetividade, a dualidade do final de “A Origem”. Estou aqui para discutir a subjetividade, a dualidade do filme inteiro. Não falarei spoilers.

Fazer uma crítica é, de certa forma, interpretar esse sonho filmado de outra pessoa. E “A Origem” oferece duas interpretações (repito,não estou me referindo ao final). Uma interpretação é psicológica e a outra, mais artístico-literária. Admito que só percebi a segunda interpretação após ler um trecho da revista Total Film (não leio críticas antes de escrever aqui, só vi um trecho da crítica deles pois estava curiosa demais).

“A Origem” impressiona inicialmente por ser um filme sobre o funcionamento da mente humana. Como grande parte da sua trama se passa dentro do subconsciente de diversos personagens, o espectador tem a chance de distinguir, personificados na forma das “Projeções”, sentimentos, defesas e fixações da nossa mente. O sentimento de culpa, a auto-sabotagem e o luto do personagem Cobb se tornam os verdadeiros vilões do filme, através de uma casca humana, a personagem de Marion Cotillard, Mal. Logo, para o maestro Christopher Nolan, nós podemos ser os piores vilões da nossa própria história. Nossos traumas são armas apontadas para nós e todas nossas relações. Idéias são os vírus mais destruidores. Trancamos em cofres nossos segredos. Cofres que nem mesmo nós temos a combinação. Prendemos em nossa mente tudo aquilo que não estamos preparados para ver partir. Mas tudo o que prendemos tenta nos destruir até, por fim, achar uma saída. Saída que só nós mesmos podemos permitir.

Porém “A Origem” também é um filme metalinguístico. Nolan apresenta o cinema como a arte de fazer e compartilhar sonhos, e representa todo o processo de produção de um filme de maneira metafórica no decorrer de sua obra. Ao interpretar “A Origem” dessa maneira, podemos perceber que Cobb é a representação do diretor de cinema, que percebe que não consegue mais impedir a interferência de seus fantasmas pessoais no seu processo criativo, e pára de escrever seus próprios filmes. Assim, Ariadne é a representação da sensibilidade, curiosidade e liberdade criativa de uma jovem roteirista, enquanto Eames é o talentoso ator, Arthur o prático e nada criativo produtor e Mr. Saito a influência excessiva do investidor,do estúdio. O cinema é apresentado como vício, obsessão e única forma possível de criar de forma plena para quem o faz, e como jogo de espelhos, golpe bem estruturado para encantar e enganar quem o assiste.

Christopher Nolan é um ilusionista. A frase que serve de espinha dorsal para uma de suas obras (O Grande Truque), “Você está prestando atenção?”, parece ecoar por todos os minutos de sua filmografia, que desafia nossa percepção e inteligência a todo o tempo. Nolan consegue, com “A Origem”, combinar pela primeira vez na história do cinema moderno, o visual (efeitos especiais de primeira), o cerebral (roteiro complexo e genial escrito por ele mesmo) e o emocional. Desta maneira, me atrevo a dizer que o ainda jovem diretor inglês criou o blockbuster perfeito. As cenas em câmera-lenta são algumas das mais bonitas dos últimos tempos. Coisa de Oscar, me escutou, Academia?

O elenco do filme brilha, sem elos fracos, com Leonardo diCaprio finalmente me convencendo à apagar a imagem de “menino do Titanic” que eu mantinha dele e apresentando um protagonista aflitivamente contido, apesar do turbilhão interno que o habita. Ellen Page e principalmente Joseph Gordon-Levitt reafirmam seus status de revelações do cinema atual e Tom Hardy é uma ótima surpresa como Eames. A trilha sonora de Hans Zimmer é impressionante, marcante de forma incomum para uma trilha instrumental.

Se o cinema é a arte dos sonhos compartilhados, nada melhor do que deixar que as linhas entre a realidade e o subconsciente sejam borradas através dos fantásticos delírios de Nolan, um homem que sabe que não se deve ter medo de sonhar um pouco mais alto. Ele sabe também que tantos sonhos dentro de sonhos, tantos filmes dentro do mesmo filme, tanta vontade de implantar idéias, pode resultar em um filme instável. Mas ele sabia que era um arquiteto à altura do desafio. Falhas? Sim, existem. Mas quando você acorda, é até difícil de lembrar-se delas diante de um filme tão grande e ambicioso. Ver 148 min passarem como 20 min. E o melhor: poder voltar pro mesmo sonho. Eu voltei. E saí querendo voltar de novo.

7 comentários:

  1. "Porém “A Origem” também é um filme metalinguístico." - Absurdamente genial!

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  2. Demorou mas saiu hein? E compensou. Muito bem escrito, mais uma vez. Me fez relembrar toda a trama, muito bem articulada, do filme. Vou querer ver o filme novamente assim que sair em DVD. =D
    Gabi

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  3. O que mais me marcou nesse filme foi a profundidade dos personagens, você podia ver a história de cada um estampada nos rostos dos atores. E o Leonardo diCaprio foi mesmo impecável.

    Muito bom o texto, com certeza deu vontade de assistir de novo.

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  4. À propósito, a música do Aracade Fire caiu como uma luva, e eu não sei como você faz isso, mas ela terminou certinho junto com o texto O.O

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  5. Ahn, agora compreendi seu olhar fulminante dirigido a mim quando eu disse que eu não tinha gostado do filme. Muito "cool" sua análise :P. "A Origem" é um bom filme, o que não significa que eu tenha gostado ( que cara chato! o único peixe nadando contra o cardume rs...(não faço isso por prazer, é pela falta dele)).

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  6. Estão querendo indicar A Origem ao Oscar por melhor roteiro. Mas olha o que tá ameaçando:

    http://disneycomics.free.fr/Ducks/Rosa/show.php?num=1&loc=D2002-033&s=date

    (escrita e desenhada por Don Rosa, Noruega, 2002)

    Seria coincidência?

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  7. WOOOOOW, Rafael, valeu pelo link O.O

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