domingo, 25 de março de 2012

A Arena



Filme: Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012)
Nota: 8,25
Para ler escutando: Manic Street Preachers - If You Tolerate This Your Children Will Be Next

Existe, na mente de todos nós, um filtro que torna a experiência de assistir a um filme de horror mais tolerável. O filtro da descrença. Aquele que avisa para o nosso consciente, a cada minuto, que não há razão para pânico, pois tudo aquilo não é real. Os fantasmas não vão te pegar, a rua está nesse instante livre de zumbis, não há monstro escondido embaixo de sua cama. Assim, algumas das histórias mais assustadoras são aquelas que escapam, inalteradas pelo filtro, e são percebidas por seu cérebro como possíveis... ou até mesmo prováveis. Kubrick e Burgess conseguiram isso com Laranja Mecânica. Em um grau completamente diferente, com importância e clima bem diversos, Gary Ross e Suzanne Collins conseguiram isso também. É o que prova a primeira parte da adaptação da saga Jogos Vorazes para o cinema.

O que impede o ser humano de retornar ao tempo em que a política do Pão e Circo levava escravos a lutarem até a morte nas arenas do Império Romano? Avançamos tanto assim que podemos ignorar o lado bárbaro que já nos dominou? E que ainda desponta em diversos momentos, com moradores de rua sendo mortos por membros "entediados" da classe média? É essa pergunta que deve assombrar a mente do espectador atento da saga Jogos Vorazes, cuja adaptação para o cinema, se bem feita, não deveria atenuar a brutalidade, violência e injustiça do "reality show" que retrata. Nesse aspecto, Gary Ross é bem sucedido, e acentua o aspecto revolucionário do livro que adaptou tão bem, no filme que é talvez o melhor passo inaugural que uma franquia infanto-juvenil já teve nas telonas.

Mas Jogos Vorazes, o livro, coloca um campo minado tão complexo e de difícil resolução como o que cerca os suprimentos dos tributos carreiristas na Cornucópia. Como mostrar o desenvolvimento de personagem, seu arco (não o literal, mas o literário), de Katniss, personagem trabalhada com perfeição no livro, se toda a narrativa é feita em primeira pessoa? Como transformar os pensamentos íntimos de Katniss em película? Ross tinha duas saídas, nesse caso: a primeira seria incluir uma narração em off, recurso que poderia resultar em um desastre. A segunda alternativa, definitiva e presente no filme, seria confiar na excelente Jennifer Lawrence, protagonista da adaptação, para revelar todos aqueles segredos e intenções com apenas gestos e olhares.

Apesar do trabalho brilhante de Lawrence, que faz de Katniss uma versão mais suave de seu grande papel, Ree Dolly, de Inverno da Alma, brechas inevitáveis são criadas na mente daqueles que assistem a Jogos Vorazes sem o conhecimento prévio de toda a narrativa literária de Collins. Assim, dois filmes convivem no mesmo espaço: aquele que os fãs assistirão, no qual Katniss é tão complexa quanto sua versão contida nas palavras (diria, inclusive, que esta é a protagonista mais realista e esférica de qualquer série literária infanto-juvenil), e o que os não-iniciados na série irão conferir nas salas de cinema.

A direção de Ross captura o caos da arena perfeitamente, injetando medo e adrenalina reais em diversas cenas de ação que, nas mãos de outra pessoa, poderiam se tornar apáticas e retidas no lugar comum, além de causar arrepios em momentos-chave da narrativa, como a "colheita" e o incidente de Rue. Mas nem tudo é perfeito: a direção de arte e o figurino, mesmo com o desafio de transformar em imagem o "exagero" dos moradores da Capital, tiram o brilho de certas cenas com uma aparência de descaso, e o final parece apressado, eliminando o impacto de alguns golpes importantes que se acumulam nas páginas derradeiras do livro.

Um departamento que não decepcionou foi o elenco. Além de Lawrence, que se firma cada vez mais como uma das grandes apostas de sua geração, Josh Hutcherson mostra que fez bem a transição do status de bom ator mirim, que conquistou em obras como a adorável comédia "ABC do Amor", para um papel mais denso, enquanto Donald Sutherland se destaca no elenco adulto com um vilão memorável. A trilha sonora acompanha o filme com precisão, e culmina nos créditos finais, embalados pela arrepiante Abraham's Daughter, do grupo Arcade Fire.

Os brutais Jogos Vorazes só existem por que também existe sua audiência, sedenta por sangue e entretenimento. Também só existe por que existe fome, desigualdade, dominação do mais forte sobre o mais fraco. E também deve sua existência à necessidade uma esperança, de um herói para capturar os corações dos menos favorecidos. Com tantos elementos apresentados como ficção científica mas vivenciados por nós, na atualidade, como não ser assombrado pelas perguntas levantadas pela obra de Collins? Como ter certeza da distância segura que a ficção mantém da realidade? A resposta está na frase mais recorrente do filme: May the Odds be Ever in Our Favor.

2 comentários:

  1. Assisti o filme hoje. Gostei bastante! Ainda não li o livro mas deu muita vontade de ler. Espero que os tributos dos outros distritos sejam mais explorados no livro do que no filme, onde algumas mortes passaram indiferentes (quando não deveriam, na minha opinião).

    ResponderExcluir
  2. Acabei de ler o livro! Li ele inteiro hoje. O livro é ótimo, mas devo confessar que preferi o filme em alguns aspectos. Com certeza a Katniss e o garoto do pão são mais bem trabalhados no livro, mas eu realmente simpatizei com alguns personagens do filme, principalmente o Cato, com aquele discurso perto do fim, que acho que foi a grande sacada do filme pra me ganhar em relação ao livro.

    ResponderExcluir